sexta-feira, março 20, 2020

Redundância e Europa

Tenho seguido, como tanta gente, as previsões para a evolução da epidemia, quer a nível nacional quer a nível global. Previsões otimistas e previsões pessimistas. Pequenos e grandes esforços de aplicação de capacidade matemática previsional. Cada pequena inflexão é uma esperança. Para as pessoas, para as famílias, a esperança é importante. Mas, coletivamente, para o Estado e outras instituições, confiar na esperança pode revelar-se uma desgraça quando estamos a lidar com sistemas críticos (i.e. sistemas "que não podem falhar" pelas consequências devastadoras que essa falha comporta). É para o "pior caso", e sobretudo/apenas para esse, que esses sistemas se devem preparar. Para tal, precisam muitas vezes de redundância, de sobredimensionamento - e o sistema de saúde é, talvez, o maior sistema crítico das sociedades contemporâneas. Redundância e sobredimensionamento são geríveis mais eficientemente à macro-escala. À escala nacional para os que podem. À escala macro-regional para os que percebem a força da integração. Daí ser tão ensurdecedor o silêncio distante da UE, independentemente dos milhões anunciados em cima da crise e das declarações de intenções. Com o Brexit, a tragédia dos migrantes, a sua impotência internacional (tão evidente na Síria, no Irão e na Ucrânia, por exemplo) e, agora, com esta manifesta falta de protagonismo na resposta ao COVID-19 (talvez a maior ameaça que a Europa enfrentou desde o início do processo de integração), a nossa Princesa Europa parece estar tristemente perdida.

sexta-feira, março 20, 2015

Imaginem duas chávenas de café à vossa frente

O mundo está a mudar muito rapidamente. Tecnologias como a robótica, a inteligência artificial e a realidade virtual, associadas à aceleração exponencial da velocidade de computação, estão a transformar rapidamente e de forma disruptiva as economias e a forma como vivemos. O Instagram substituiu a Kodak, tal como o airbnb está a substituir a Hyatt ou a Uber está a inquietar milhares de operadores de táxis espalhados pelo mundo (e também em Portugal). O acesso à informação é cada vez mais imediato. Numa pequena incursão aos desenvolvimentos da realidade virtual, podemos citar os óculos da Google (apresentaram o conceito ao mundo, apesar de serem algo feios, pouco práticos e muito caros), a Oculus VR (comprada pelo Facebook) e a sua ligação à Samsung Gear VR, e o Google Cardboard como exemplos de tecnologias que estão e vão transformar a nossa própria perceção do mundo e as interações de que é composto. Também na vanguarda da nova exploração da realidade virtual estão a Fearless (para combater os nossos medos através de doses crescentes de realidade virtual…experimentem), o Lowe’s Holowroom (para experienciarmos mudanças lá em casa) e a Magic Leap, só para dar alguns exemplos. Para percebermos melhor o que já está a acontecer, imaginem que estão sentados a uma mesa e que têm duas chávenas de café à vossa frente. O desafio (sem tocar e sem cheirar, para já) é escolher qual a verdadeira. E imaginem que, olhando com toda a atenção, é impossível notar qualquer diferença. É esse o mundo em que iremos viver. E não será daqui a muito tempo. Adenda: daqui a um pouco mais de tempo poderemos sentir a chávena virtual (com umas luvas ou pequenos adesivos nas mãos), “cheirá-la” (através da representação de odores que acionam a nossa perceção de cheiro) e mesmo “bebê-la” (quando “levarmos” a “chávena” à boca teremos a exata perceção de que a estamos a beber, sabor incluído).

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

Uma visão para a economia portuguesa*

Um conjunto de mudanças endógenas no funcionamento da economia e da sociedade portuguesas combina-se com forças externas globais para transformar as próximas décadas num período único em termos de dinâmica de crescimento, aumento da capacidade competitiva e reorganização setorial, institucional e social do nosso país. Portugal associa um processo de reindustrialização à liderança global no que toca à economia verde, destacando-se, por exemplo, nas áreas das energias limpas, mobilidade sustentável e novos materiais inteligentes, e afirmando-se como prestador de serviços intensivos em conhecimento. Portugal reforça igualmente o seu posicionamento internacional como país de turismo e acolhimento, não só através das suas vantagens comparativas "clássicas", mas também de uma renovada capacidade de organizar o seu território, apostar na reabilitação, no património e no planeamento urbano. Portugal responde aos problemas económicos com a capacidade coletiva de gerir e encontrar respostas, conseguindo, passo-a-passo, reequilibrar as situações. A combinação das melhorias ao nível do planeamento urbano com a dinâmica das indústrias culturais e criativas reforçam uma lógica de "acolhimento inovador", tal como as atividades associadas ao envelhecimento ativo, incluindo o desenvolvimento de nichos de mercado relacionados com a indústria da saúde/farmacêutica. *Adaptado de Alvarenga, A. (coord.), Carvalho, P., Lobo, A., Rogado, C., Azevedo, F., Déjean Guerra, M. e Rodrigues, S., “A Economia Portuguesa a Longo Prazo – um Processo de Cenarização”, DPP, Lisboa; 2011; Fortes, Patrícia, Alvarenga, A., Seixas, J., Rodrigues, S. (2015), “Long-term energy scenarios: Bridging the gap between socio-economic storylines and energy modeling”, Technological Forecasting and Social Change, Volume 91, February, Pages 161–178.

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Há razões para otimismo (apesar de tudo)

O mundo enfrenta problemas difíceis e a informação negativa, perigosa, tem uma força que as boas notícias, muitas vezes, não têm. O ser humano está, aliás, “programado” para estar particularmente alerta ao perigo. Será por isso (e em resposta a isso) que terrorismo, fundamentalismo, guerra, pobreza, desemprego, escassez de água, fome, poluição, pandemias, crises energéticas, crises económicas, fenómenos climáticos extremos, perda de biodiversidade e acidentes graves entram diariamente pelas nossas casas e, sobretudo, pelos nossos pensamentos adentro, provocando diferentes sentimentos: medo, revolta, tristeza, impotência, apatia, indiferença (penso muitas vezes na pouca distância que vai da tolerância à indiferença…). O pessimismo parece ter algo de biológico, está “inscrito” em nós, na nossa já longa história evolutiva em que dar atenção ao perigo é o mais importante. O resto, neutro ou positivo, é secundário. Posto isto, junto uma pequena lista de tendências positivas, olhando para a larga escala (temporal e espacial), portadoras de esperança para o mundo (apesar de tudo): a esperança média de vida e a literacia têm vindo a aumentar, tal como o rendimento médio per capita. A mortalidade infantil tem vindo a diminuir muito significativamente. Milhões de pessoas passaram a ter acesso a água, saneamento, eletricidade, capacidade de refrigeração e aquecimento, equipamentos de comunicação e de transporte. A guerra, infelizmente, ainda marca a humanidade, mas, comparativamente, o período contemporâneo está longe de poder ser considerado um período particularmente sangrento da história. Para a humanidade, o caminho é longo e complexo. Mas há razões para otimismo (apesar de tudo).

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Economia Portuguesa: os últimos 70 anos num minuto

Até aos anos 50, a economia portuguesa caracterizava-se por um acentuado ruralismo e pelo foco na auto-suficiência alimentar, a par da proteção da produção nacional. De 1950 a 1973, Portugal apresenta sinais de crescimento económico, embora persistam a pobreza e as desigualdades sociais. As tentativas de industrialização são condicionadas e existem fortes restrições ao investimento. O país “urbaniza-se” e “industrializa-se”. Os anos pós-crise petrolífera e pós-25 de Abril foram marcados por forte instabilidade. Viveram-se duas crises económicas particularmente fortes em Portugal, as quais levaram a intervenções do Fundo Monetário Internacional. A primeira ocorreu em 1977. A segunda em 1983. A partir de meados dos anos 80 entramos na chamada “fase europeia”. O crescimento económico é fortemente apoiado nos fundos comunitários. No início dos anos 90, no contexto do colapso do Sistema Monetário Europeu, a situação económica em Portugal deteriora-se rapidamente e o país entra em recessão. Dois movimentos estruturais marcam a segunda metade da década de 90: a consolidação de um polo de exportações industriais essencialmente baseado em investimento estrangeiro; e um intenso investimento e modernização dos sectores infra-estruturais (telecomunicações, audiovisual, gás, eletricidade, auto-estradas, água e ambiente). A partir de 2001, a economia portuguesa oscila entre a recessão e a estagnação, em contexto de adesão ao euro e de globalização. A partir de 2008 acentuou-se a crise económica internacional. Algumas economias da zona euro viram-se na necessidade de recorrer a ajuda externa para se financiarem. Em 2010/11 foram formalizados os pedidos de resgate financeiro.

sexta-feira, novembro 28, 2014

Um tempo serenamente disléxico

Encontrei um livro de Murakami lá em casa e adotei-o. Leio-o devagar, ao mesmo tempo que leio outras coisas. As ideias e os acontecimentos que descreve vão interferindo com os meus pensamentos e dia-a-dia. É como se o dia-a-dia descrito por Murakami nesse mundo possível de 1Q84 contaminasse o meu, lentamente. Acho que estou perante uma obra-prima. As disrupções temporais que explora, as distorções do possível que evoca, transformam o ano de 1984 no ano de 1Q84. De alguma forma, trata-se de um processo idêntico ao que utilizamos quando, através do encontro entre a grande mas falível capacidade cerebral que possuímos e os acontecimentos, interpretamos o real (e formamos convicções; e tomamos decisões). Esta espécie de dislexia do tempo e do possível é consumidora de energia, particularmente numa sociedade da informação em grande aceleração a que se tende a responder com inércia (não confundir com tolerância) ou com sobre-simplificação (não confundir com clareza). Como orientação, só me consigo lembrar de um caminho no sentido: • da consideração aberta do possível (combatendo fatalismos); • do reconhecimento da incerteza (a partir do conhecimento e não da ignorância); • da capacidade de reconhecer padrões (e limitações) pessoais de interpretação e de decisão; • e da escolha, em liberdade, de mediadores (Quem ler? Quem ouvir? Quem escolher para nos informar? Quem acompanhar? A que comunidades pertencer?).

sexta-feira, outubro 31, 2014

Um segundo depois, uma fotografia de uma ferida

(1) Gosto de imaginar que todas as fotografias do mundo (cujo objeto são pessoas que sabem que estão a ser fotografadas) sofriam um atraso de 1 segundo. Ao serem apanhadas 1 segundo depois do previsto, o mais provável é a pessoa fotografada estar a dar um passo em frente (em direção ao fotógrafo). O registo deste passo (em vez do registo da encenação) poderia fazer toda a diferença: tornar a fotografia dinâmica, genuína, real. Dar-lhe um futuro. (2) Estava com a minha filha mais velha (que mesmo assim é muito nova) a ver fotografias da família. Eu perguntava-lhe “onde está a mamã?”, “onde está a vovó?”, “onde está a mana?”, etc. Quando apareceu uma fotografia minha e lhe perguntei “onde está o papá?”, ela parou por um momento, poisou a fotografia e apontou para mim (para mim mesmo, não para a minha representação fotográfica). Por momentos, os meus 40 e poucos anos de aculturação quase me levavam a corrigi-la. (3) Uma ferida serve, pelo menos, para duas coisas: como ponto de partida para a reconstrução de memórias; como testemunha da extraordinária capacidade de regeneração do corpo (extraordinária mas limitada).

sexta-feira, outubro 03, 2014

Persistência e mutabilidade

No quarto e quinto séculos a.C. os debates filosóficos aumentaram de intensidade, aprofundando-se a reflexão metafísica e a procura da autoconsciência. Heráclito, Parménides, Sócrates, Platão e Aristóteles estão entre aqueles que protagonizaram algumas das primeiras discussões entre estruturas filosóficas antagónicas, encetando diálogos que, em alguns aspectos, podem ser transportados até à era atual. O pensamento de Heráclito e Parménides, por exemplo, permite-nos imaginar um diálogo bastante vivo. Heráclito (aprox. 535 a.C. - 475 a.C.) via o mundo como um conjunto de sistemas de fluxos, mutáveis e emergentes. A incerteza e as diferentes possibilidades faziam parte da sua visão do mundo. Por outro lado, Parménides (530 a.C. — 460 a.C.) defendeu o caráter permanente, imutável, da realidade, muito inspirado pelo alfabeto que favoreceu o domínio da percepção visual, valorizando o universal, o abstrato e o estático, em detrimento do fluido e o particular. Heráclito preocupou-se sobretudo com o processo, orientado pela indeterminação, fluxo, interpenetração, em mudança incessante. Em contraste, quadros teóricos positivistas como os de Karl Marx e Adam Smith (e Parménides) acreditavam na presença de forças persistentes (e invisíveis) subjacentes e definidoras do mundo real. Parménides e a permanência, as causas profundas que marcaram o passado e marcarão o futuro. Heráclito e a incerteza emergente, a impossibilidade da previsão, a certeza de que, por muita análise que se faça, seremos sempre surpreendidos.

sexta-feira, setembro 05, 2014

O PIB e a tartaruga

O PIB – Produto Interno Bruto é a “pop star” dos indicadores económicos. Amado por muitos, temido por outros tantos, todos já ouviram falar dele e, no fundo, no fundo, sabem que não o podem ignorar. Todos sabemos que o PIB não é perfeito mas, não obstante a procura de alternativas (em Portugal, ver, por exemplo, o Índice de Bem-Estar do INE), o crescimento do PIB continua a ser a grande ambição da política pública, o critério central que, apesar das suas limitações, “habita” a cabeça dos decisores e molda as suas decisões. Não é o único critério, claro. Sustentabilidade ambiental, emprego, saúde, equidade na distribuição de riqueza, entre outros, também entram na equação. Mas o PIB é o PIB. A evolução deste indicador sustenta ou derruba governos, cria ou destrói o sentimento de otimismo face ao futuro, permite ou dificulta a facilidade de crédito internacional do Estado. Mas o que é, afinal, o PIB? O PIB representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais produzidos num espaço geográfico definido, durante um determinado período (o mais comum é o ano). E como tem sido a sua evolução em Portugal? Olhemos apenas para o século XXI. Em resumo, podemos dizer que a evolução do PIB foi… muito má. Isto equivale, em números, a um PIB que passou de 152,2 mil milhões de Euros em 2000 para 153,5 mil milhões em 2013 (valor preliminar; PIB a preços de 2006), o que corresponde a uma Taxa Composta de Crescimento Anual de 0.1%. Ou seja, na prática, e olhando de forma estrita para o PIB, quase que poderíamos dizer que “estamos na mesma”. Só que a coisa não é bem assim. Primeiro, a estabilidade económica “exige” (pelo menos por enquanto) crescimento económico. Crescer menos de 1% ao ano é dificilmente sustentável a longo prazo, sendo insuficiente para melhorar significativamente as taxas de emprego. Segundo, a referida taxa esconde anos particularmente complicados, como 2003, bem como o período mais difícil de todos que se tem vindo a prolongar, quase ininterruptamente, desde 2008. Terceiro, o desempenho económico de Portugal foi significativamente inferior à média da UE, sendo que a própria UE teve uma performance económica muito aquém quer dos grandes asiáticos emergentes quer, por exemplo, dos EUA. Ou seja, estamos a perder uma corrida contra uma tartaruga idosa e já bastante cansada (e não contra um carro de corrida).

sexta-feira, agosto 08, 2014

Tem potencial?

Fala-se muito em “potencial”, em “ter potencial”. Ideias, pessoas, regiões, cidades, países, sectores de atividade, etc., são avaliados como “tendo potencial” (ou como lhe faltando o mesmo). Mas o que é, afinal, ter potencial? Ter potencial é uma projeção do objeto da avaliação num futuro possível entendido, sob um determinado ponto de vista, como positivo (este ponto de vista pode ser individual, organizacional, nacional, mas também ambiental, económico, tecnológico, etc.). Parte-se do passado e do presente e, com base em informação e evidências (evidence), projeta-se estas evidências no futuro, augurando-se “potencial” a algo. O que é, então, necessário para ter potencial? Parece-me haver três condições: 1 – A existência de características distintivas na relação que é estabelecida com o contexto. Ter potencial é uma medida de relação. Nada nem ninguém tem potencial isolado. O potencial vem da relação com o outro, com o que não se controla, com o que não depende de “nós” (chamem-lhe contexto estratégico, mercado, ou outra coisa qualquer). O potencial vem da capacidade dessa relação se desenvolver, ganhar amplitude. 2- A existência de evidence/informação sobre essas características distintivas e de capacidade para as interpretar (sensibilidade). Somos capazes de captar esses sinais portadores de futuro, evidências de diferenciação, se quisermos usar a linguagem da Estratégia? 3 – A capacidade (e o desejo) de projetar e articular essa evidence/informação numa ideia de futuro possível, plausível e desejado (“projeto”). De definir e implementar uma intenção estratégica.

sexta-feira, julho 11, 2014

A Estratégia tem um problema com o futuro

A Estratégia tem um problema com o futuro: o raio da coisa teima em ser incerta, não se deixa prever com facilidade, surpreende-nos e coloca em causa os nossos planos, feitos com tanta atenção, coerentes, “acertados” e alinhados. Alinhados, regra geral, com uma evolução “business-as-usual” do contexto estratégico, assumindo não só que o dia de amanhã vai ser mais ou menos igual ao de ontem, mas também que o próximo ano será mais ou menos igual ao ano anterior, os próximos 5 anos mais ou menos iguais aos 5 anos anteriores, e assim sucessivamente. Ou seja, o planeamento intitula-se com frequência de “estratégico” mas fica retido no curto prazo, no cada vez mais curto espaço de tempo em que as condições estruturais do nosso negócio, do nosso mercado, do contexto socioeconómico em que nos inserimos, permanecem relativamente constantes. Então, o que fazer? Simplificando, temos pelos menos duas hipóteses: (1) Identificar e analisar os fluxos longos de mudança que mais afetam o nosso foco / a nossa questão de base, pensar a forma como se inter-relacionam e situarmo-nos face a eles. Sete exemplos clássicos desses fluxos longos conhecidos por Megatendências (ou Tendências Pesadas): Envelhecimento da População; Pressão Crescente sobre os Ecossistemas; Urbanização; Cultura Digital; Globalização Económica; Individualização; Convergência Tecnológica. (2) Mudar as regras tradicionais da Estratégia e, em vez de nos focarmos no “certo” (ou seja, no que achamos que continuará de uma determinada forma), focarmo-nos no incerto (ou seja, nas variáveis chave que, no médio/longo prazo poderão evoluir de formas muito diferentes). Sete exemplos destas potenciais Incertezas Cruciais, pensando em Portugal como foco: Evolução do Perfil de Especialização; Sustentabilidade Financeira da Economia; Capacitação Institucional; Valores Culturais e Capacidade de Gerar Capital Social; Evolução do Modelo de Coesão Social; Tipologia e Papel das Cidades; Evolução dos Sistemas de Ensino e Formação em Portugal.

sexta-feira, junho 13, 2014

Também o amor é tempo, assim

O tempo é uma coisa estranha (primeiro que tudo é simultaneamente objecto e instrumento de si próprio; sem tempo não é possível falar do tempo). Decidiu-se esta coisa do passado, do presente e do futuro. Sobre o passado costuma dizer-se que não devemos ficar agarrados a ele. Mas isso é obviamente impossível. Felizmente estamos “agarrados ao passado”. É do passado que retiramos as experiências, os ensaios de acção, os nossos ecossistemas (naturais, mas também sociais e culturais). É do passado que vimos. Somos passado, nesse sentido. Sem passado não somos. Mas não temos que nos preocupar: a morte libertar-nos-á das amarras do passado. E, olhando de longe o tempo, isso ocorrerá já amanhã. Sobre o futuro costuma dizer-se que “a Deus pertence”. E parece-me fazer sentido. Só Deus, possivelmente, pode lidar com a sua abertura, pluralidade e complexidade. Mas há um pequeno problema: as expectativas. Os nossos cérebros absolutamente pequenos (mas grandes em termos relativos) são autênticas máquinas de criação de expectativas. Desde as mais prosaicas e “automáticas” (por exemplo, a expectativa de que o carro da frente que faz pisca para a esquerda vire, de facto, para a esquerda), até às mais “estratégicas” (por exemplo, a expectativa de que um determinado investimento seja “rentável”). Nesta lógica, o amor é “só” a expectativa da eternidade; também o amor é tempo, assim.

sexta-feira, maio 16, 2014

Não há panda que se lhe compare

Há muito tempo que me apetece escrever sobre o carneiro Choné. Antes de mais para clarificar o sexo do animal: Choné é um carneiro, não uma ovelha. Parece-me ser de elementar justiça afirmá-lo sem rodeios (podemos discutir, no entanto, se se trata de um carneiro ou de um cordeiro). A letra da canção é andrógena e induz os nossos filhos em erro (“ele é ovelha, ele é Choné”). Depois, e à semelhança, imagino, de muitos pais e mães de crianças maravilhadas pelo ritmo e expressividade desta série de animação britânica, porque passo algumas horas da minha vida a assistir às aventuras do dito carneiro (ou cordeiro) e dos seus amigos. Uma das muitas vantagens de ter filhos pequenos é podermos apreciar este tipo de oferta sem os outros adultos pensarem que estamos a ser infantis (outras vantagens passam, por exemplo, por ter sempre uma boa justificação para recusar convites indesejados, voltar a brincar com legos, passear lentamente pela cidade e, claro, ter a experiência maior do amor por um filho, o processo de construção desse amor em relação e a permanente transformação e desafio que ele comporta). Mas voltemos ao que verdadeiramente interessa. O carneiro (ou cordeiro) Choné é o líder de um excêntrico rebanho de lanígeros que vive numa quinta com um ser humano (o fazendeiro), um cão (o Bitzer – acho que significa “rafeiro”, ou algo parecido) e uma vara de porcos mal-dispostos (assim de repente não me lembro de outras personagens). Nota-se na série a influência seminal de Wallace e Gromit (onde pela primeira vez o Choné apareceu) e o traço criativo e rigoroso da BBC. A animação e os argumentos são de uma enorme qualidade e clareza. A ausência de diálogos clarifica, nem se nota, e faz-me lembrar (não estou a exagerar) o silêncio indispensável para apreciar um concerto de música clássica. Não há, peço desculpa, panda que se lhe compare.

sexta-feira, abril 18, 2014

Os botões de punho

Há tanta coisa; a água; a linha e o resto; a coluna do renascido MEC; o Herman, não o José, o Kahn; o pensamento; a ideia de parar de ter ideias; o móvel de criado-mudo; os olhos azuis da Maria; os caracóis da Ana; o saudável Agualusa que tem um diário; a minha memória também necessita de um; uma casa onde se pode escrever; uma casa marcada pela leitura, não de livros, mas do que existe; o almoço e a conversa; o café na máquina que funciona cada vez melhor; o eu e o mim; o calor de Lisboa (e o Tejo ao início da noite?); a escala de Viseu; os bancos, não os de jardim; as cadeiras, não as da universidade; a religião; os arquitectos; as pessoas; os seus cérebros; as suas emoções; a ausência de um; a ausência do outro; a ausência dos dois; a presença de um; a presença do outro; a presença e interacção dos dois, cérebro e emoções; o km2 à nossa volta; as limitações do cérebro que nos dão corpo; as emoções que nos relembram que temos corpo; a criatividade que emerge; o círculo interrompido; e o acidente; a música; a grande música; e o ritmo; a doença; a roupa; e os sapatos; a comida (incluindo a japonesa e o peixe grelhado); e desligar; a televisão; o telemóvel; o computador; o rádio; a luz; o corpo; e ligar-nos; construir o “entre”; valorizar o encontro; falhar; voltar a falhar; e falhar melhor, como diz o meu amigo João; olhar para o mundo; o envelhecimento; o passado que alteramos cada vez que nele pensamos; o presente monopolista e inexistente; a liberdade ilimitada e a outra, a grande, íntima, limitada; o cansaço; a energia; o poder sobre os outros; o poder dos outros; o poder; o amor; os líderes que conheciam a verdade e sabiam; o “tudo é possível”; e a relação, a partir da colisão; a linguagem; o bluegrass; a ironia; e o riso; a gargalhada; o sorriso; o silêncio; os botões de punho.

sexta-feira, março 21, 2014

Acelerar e Desacelerar

Tenho duas filhas pequenas que me iluminam os dias. Crescem rápido e a sua capacidade de aprendizagem parece infinita. Ao vê-las, sinto, por vezes, que alguém acelerou a imagem, como naqueles pedaços de filmes em que é usado o efeito avanço rápido (fast forward), permitindo que o movimento invisível (de uma árvore ou de uma paisagem, frequentemente associado ao passar das estações do ano) se torne visível.Muitas vezes temos que desacelerar para ver, para reparar. Este exemplo mostra que, em algumas ocasiões, também temos que acelerar para ver. Nesta perspectiva, o tempo individual é, acima de tudo, ritmo, cuja cadência ganha significado pela alternância entre aceleração e desaceleração e pelo que reparamos em cada momento (“reparamos” no duplo sentido de “ver” e de “agir”). Trata-se de adequar o ritmo e a acção/decisão aos acontecimentos, conscientes do carácter fractal destas diferenças. Cada acontecimento-encontro tem um ritmo e um tempo próprios. Uma aceleração-precipitação desapropriada (fruto, por exemplo, da ansiedade, da necessidade de preencher um vazio percepcionado) e “o mal está feito”. Uma desaceleração-espera apática e a oportunidade esfuma-se. É por estas (e por outras) que a Gestão e a maneira como tomamos decisões são formas apaixonantes de “artesanato”.

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

Há uma impossibilidade neste tempo

Os partidos políticos, mais ou menos articulados, apresentam-nos narrativas (histórias) para a sociedade, para a economia, mas também para o mais pequeno pormenor técnico-regulamentar. Estas narrativas são treinadas, "eficientes", repetidas, repetidas, repetidas. Com as repetições, repetições, repetições, as "impurezas" vão desaparecendo, tornando-as ainda "melhores". E todas apelam a uma escolha, a um posicionamento. E muitas pessoas informam-se, escolhem, posicionam-se. Mas, lá no fundo, sabem que estas escolhas são sempre "primárias", "orgânicas" (é o nosso corpo que decide antes?), ideológicas (seja). Podemos, eu sei, ter a nossa própria narrativa sobre a sociedade ou a economia. Podemos pensar nela (uma meta-consciência), torná-la mais resiliente, sabendo que é sempre frágil, perene, curta e indefinida. Sugiro três caminhos possíveis e articuláveis para a procura da nossa narrativa individual: (1) Procurá-la da mesma forma que uma imagem surge no seu negativo. Isto é, procurar a nossa narrativa explorando incessantemente o que dela não faz parte, conhecendo ao pormenor o que negamos. (2) Usar mediadores com quem, ao longo do tempo, criamos uma relação de confiança. (3) Usar o futuro para decidir no presente mas não para deixar de estar aqui, neste momento, sentado a escrever um texto, rodeado de notas sobre as muitas coisas que tenho para fazer. O potencial de existir (e de decidir) "estando" é muito grande. Este "estar" sintetiza, em tempo real, o passado longo e o futuro longo. Nesse gesto tudo se decide e, a seguir, desse gesto como decisão já não resta nada, "apenas" a sua interacção com o contexto e a nossa narrativa em construção. Esta interacção entre "gesto" e "narrativa em construção" é o ponto onde estou.

sexta-feira, julho 10, 2009

Eu não sei se vou cumprir o meu programa político

Sazonalmente, em tempo de eleições, os políticos apresentam um programa político; depois, se ganharem as eleições, tentam implementá-lo. Simples. Este processo simples, com as características de um sistema nada complexo (apresentação do programa » eleição » cumprimento do programa » eleição), parece a coisa mais natural do mundo, óbvia, necessária e conveniente. Afinal, é ou não conveniente e sério que um político cumpra o que propôs aquando da sua eleição? Esta questão encerra em si mesma um dilema. O problema está na promessa. Como todas as pessoas, também os políticos, quando prometem, têm um “futuro oficial” na sua cabeça, isto é uma evolução que, de forma mais ou menos estruturada, mais ou menos trabalhada e explícita, antecipam para o contexto da sua decisão, para as forças que não controlam mas que afectam de forma decisiva a qualidade das suas decisões (e, logo, a exequibilidade/qualidade das suas promessas e do seu programa eleitoral). O problema é que esse “futuro oficial” é frequentemente frágil, pouco estruturado, pouco “trabalhado” e aberto à mudança. Mas se não controlam essas forças o que é que “eles” têm a ver com isso? Tudo. Têm tudo a ver com isso. Não é por não querer ver a ascensão da China na economia internacional que os empresários portugueses que apostavam na mão-de-obra barata e em produtos baratos e indiferenciados deixaram de sentir os respectivos efeitos. Não é por não querer conhecer a crise económica em Espanha que as empresas portuguesas que apostaram na integração ibérica deixam de sentir as consequências dessa crise. A competência do gestor/decisor é, também, perceber muito bem as forças que não controla mas que o podem afectar decisivamente. Já não é apenas fazer melhor o que sempre se fez. Não basta fazer cada vez melhor t-shirts brancas. Não se pode perceber a Economia Portuguesa sem se perceber muito bem o que se está a passar nas Economias alemã e espanhola (para não ir mais longe). Não se pode perceber o futuro de Viseu (aliás, nem o passado) sem se perceber os constrangimentos da Economia Portuguesa, a sua matriz assente no imobiliário-construção-turismo-distribuição-banca-Estado e em algum investimento estrangeiro no automóvel e na electrónica, ou a incerteza que rodeia o orçamento comunitário e o Futuro da Política Regional. Há, assim, um dilema enfrentado pelos que prometem com um “futuro oficial” na cabeça: a qualidade das suas decisões depende da evolução do contexto dessas decisões; é, por isso, incerta. Um programa político, regra geral, não incorpora a incerteza. Um “bom” autarca, por definição, “sabe”. Sabe o que é melhor como se soubesse prever o futuro, como se tivesse um dom especial, como se não fosse necessário, nem conveniente, considerar o que é incerto e tem um grande impacto no nosso futuro, como se não fosse necessário estar particularmente atento ao que muda e, se necessário, mudar de rumo e antecipar-se à concorrência. Mas, felizmente, não é possível prever o futuro. Mas é possível antecipá-lo, simular diferentes evoluções possíveis e perceber o que essas evoluções podem significar para a nossa região. É possível, assim, construir uma estratégia para uma região ou uma cidade mais robusta face aos diferentes futuros possíveis e estar atento (e eventualmente aproveitar) os pequenos sinais de mudanças que podem ter fortes impactos no desenvolvimento das regiões no futuro. As pessoas, e os responsáveis políticos em geral, têm um “futuro oficial” na cabeça, um futuro que, implícita ou explicitamente, com maior ou menor auto-consciência, acham que vai acontecer. A questão chave é saber se esse futuro é suficientemente sólido para evitar que se cumpra “alegremente” um programa político, positivo num determinado contexto externo, mas que deixa de fazer sentido se as condições externas, “casmurras”, não se comportarem de acordo com o “futuro oficial”. E elas são, de facto, “casmurras”, mudam muito rapidamente, como fica claro quando se olha para a economia internacional na actualidade e quando se diz que, por exemplo, a economia portuguesa poderá ter um crescimento negativo de 4,5% em 2009.

sexta-feira, maio 01, 2009

N2: mais do que isso não me peçam, deixem-me fumar o meu cigarro e voltar para os matraquilhos, por favor

Esta semana ando a viajar. Esta coluna não é uma coluna dedicada às viagens. E eu não sou um viajante. Mas em viagem há ideias que aparecem. E eu gosto de sair, de aproveitar a oportunidade que tenho de conhecer o que me rodeia. Esta é uma viagem pelo familiar. Por Portugal, percorrendo a Estrada Nacional nº2 que liga, pasme-se, Chaves a Faro, passando por Viseu, claro. O objectivo é sair do dia-a-dia tão carregado de objectivos, tarefas e horários e tentar desaparecer nas conversas com as pessoas que vão aparecendo pela N2. E aparecem muitas pessoas pela N2. E, acima de tudo, muitas histórias. Narrativas de vendedores de uvas chilenas (2 euros a caixa) em pleno Alto Douro Vinhateiro que me confidenciam que em Viseu é que se vende bem. De um senhor, assustado, que olhava freneticamente para a estrada como se o viessem prender (pouco depois, vieram prendê-lo). Do senhor que, de mota, fazia 1200 km pelo Norte de Portugal, com a tenda às costas da mulher e a ideia dos copos ao final da tarde. Da dona de café de estrada que agora serve mais os sargentos do quartel do que os camionistas. Dos amigos que se juntam pela manhã para a conversa na sapataria-loja de desporto de um amigo recente em Santa Comba. De sonhos e memórias de um interior de Portugal envelhecido. De pessoas cheias de força, ainda. De sorrisos espontâneos de pessoas sentadas em muros e paragens de autocarro a ver passar os carros, os outros e as cabeças de gado. Os três quartos de hora de conversa no Torrão também me ficaram na memória. As desventuras dos alentejanos que construíram a Grande Lisboa; que passaram do trabalho no campo a 30 escudos por dia para a construção a 180; que chegavam a casa no sábado à noite e voltavam a partir para Lisboa ao final da tarde de domingo; que têm histórias maravilhosas para contar; e que contam a quem os quiser ouvir. E as meninas de Viseu que vinham todos os anos trabalhar para os campos à volta do Torrão? Quem as trazia era o dono dessa casa, está a ver? (e os olhos brilhavam, mesmo, como se as estivesse a ver - e estava, claro) De vez em quando esta suave decadência do interior de Portugal faz-me lembrar o inevitável Edward Hopper. Eu sei que é um cliché, paciência. Talvez se o Hopper e a Joana Vasconcelos se fundissem e contratassem a A. Silva e Silva para construir um país resultasse em algo parecido. Há quem saiba que a N2 termina no Algarve, basta ir sempre em frente. Há quem não saiba onde está. Há quem pense que a N2 termina em Vila Real e que a seguir vem o Porto, antes de Coimbra. Mais do que isso não me peçam, dizem, deixem-me fumar o meu cigarro e voltar para os matraquilhos, por favor.

sexta-feira, março 06, 2009

Em Crise

Já sabemos. À crise financeira juntou-se a crise económica global, de contornos incertos, relativamente à qual poucos arriscam previsões no que toca ao timing da retoma. Talvez 2010, talvez 2012. Crescimentos negativos são possíveis, expectáveis, na Europa. Desacelerações fortes nos Emergentes, incluindo um forte travão da “locomotiva chinesa”, hoje actor central da geoeconomia internacional (até porque tem um papel fundamental na aquisição da famosa dívida pública americana).
À crise económica junta-se a irmã, a crise social. Aumento do desemprego, do subemprego, apertos orçamentais para as famílias, dificuldades de sobrevivência e limitações às ambições individuais. E em contexto de crise social é expectável o surgimento de crises políticas, governos fragilizados, ascensão de populismos. Poderá começar na Europa de Leste mas não deverá ficar por aí.
E crises políticas, já se sabe, fragilizam o Estado, a sua credibilidade já afectada em contexto de sobreendividamento e maiores dificuldades de acesso ao crédito nos mercados internacionais, contribuindo para prolongar a crise financeira. Esta traz consigo a crise económica e a irmã, a crise social, antecessora da crise política.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Só uma vez uma ‘paceña’ (também nome de cerveja) ganhou o concurso de Miss Bolívia

A 20 de Novembro fui passear. Para longe. América do Sul. Peru e Bolívia.
Não é difícil. É preciso trabalhar, muito, antes, para poder partir. Também é preciso poder pagar a viagem. Mas não é caro. Não mais que umas férias de Verão no Algarve, com certeza. Mas, mais do que tudo, é preciso gostar de partir. É preciso saber que aquilo de que gostamos no nosso pequeno rectângulo ganha mais significado em perspectiva, visto de fora.
Estava muito curioso em relação à Bolívia, país encravado nos Andes, de revoluções constantes e de produtores de folha de coca. Foi deslumbrante. Os Andes são magníficos. Gostei do Peru. Amazónia, Machu Pichu e os Incas. A cosmopolita Lima, o cebiche e os “pisco sours” do velho hotel Bolivar na Praça San Martin. A magia de Cuzco. Mas adorei a Bolívia. Dura e agreste. Paraíso perdido, sempre com o céu por perto. Estranhamente perto de nós.
Descobri que os mapas na Bolívia não têm fronteiras porque, numa guerra com o Chile, a Bolívia perdeu o acesso ao mar que “completaria” o país – até nisso parece existir alguma poesia neste pedaço de mundo. E que as mulheres do Altiplano nunca (ou quase nunca) ganham concursos de beleza porque têm os pulmões maiores para respirarem melhor em altitude. Ganham sempre as de Cochabamba, Santa Cruz ou Sucre. E que Evo Morales promete “evo-lution”. E que El Alto é a capital mundial de wrestling feminino (http://www.cholitaswrestling.com/). E que professores cubanos andam de casa em casa a ensinar as pessoas a assinar o seu nome nas aldeias perdidas dos Andes. E que não há nenhuma estátua de bolivianos na avenida principal de La Paz. E que as pessoas não pintam as casas para não pagarem tantos impostos. E que é possível oferecer os Campos Elísios por amor (foi exactamente o que o espanhol Francisco Argandoña ofereceu à sua amada e mimada esposa Clotilde). Hoje, os Campos Elísios de Clotilde são um parque central em Sucre. E que Potosi já foi o centro do mundo, talvez maior que Londres e Paris (dizem eles, pelo menos), fonte da riqueza (e da inflação) espanhola e europeia devido a Cerro Rico, a montanha feita de prata que domina a cidade.
E, no entanto, a Bolívia é instável e pobre, oscilando entre a “maldição dos recursos” (sejam eles prata, ouro, gás natural, petróleo, silício, ou outros), nacionalismos fortes e tensões étnicas acentuadas, numa sociedade multi‑estratificada em que a maioria da população luta, todos os dias, pela sobrevivência.
E também é claro que o mundo ocidental é privilegiado. Podem ser privilégios frágeis, mas são claros. Podemos viajar, podemos ir, ver e voltar. Temos estabilidade política e Estados (relativamente) equilibrados e cooperantes. Democracias, impulsionadas por uma larga classe média relativamente informada e exigente, (ainda) capazes de absorver choque e de criar alternativas e transições tranquilas.

sexta-feira, novembro 07, 2008

5 ideias sobre as ideias


1- Por estranho que pareça, em muitas organizações (públicas e privadas), à medida que um(a) profissional assume maiores responsabilidades (sobe na hierarquia), fica cada vez mais envolvido em actividades de carácter eminentemente operacional, burocrático, sobrando-lhe cada vez menos tempo para a reflexão e para actividades de índole estratégica.

2- A inovação não se “decreta”. Nunca há garantias de que se vai conseguir ser inovador (nos produtos, nos serviços, nos processos). É possível, no entanto, criar as melhores condições e usar os melhores processos, aumentando o potencial de inovação das organizações.

3- Não há inovação sem criatividade. Não se inova aplicando, apenas, o pensamento crítico. E não é fácil (e muitas vezes não é adequado) tentar ser criativo e crítico ao mesmo tempo. Isto é, ter uma ideia nova que, ao mesmo tempo, é exequível/rentável/etc.. É por isso que é essencial, em processos de inovação, prever momentos para a criatividade (afastando a crítica) e, depois (e não durante), ter momentos para a crítica.

4- A inovação é, frequentemente, um downgrading da “loucura”, do “impossível”, de ideias que não funcionam. Se não pensarmos antes o “impensável”, na expressão de Herman Khan (o homem dos Cenários a longo prazo na RAND Corporation que “pensava” a guerra nuclear), o “impossível”, temos diminutas hipóteses de ser inovadores.

5- Há culturas/sociedades/regiões/cidades claramente mais abertas à criatividade, à diferença, ao excêntrico (“que se desvia do centro”). Nós (cidade de Viseu, região Centro, Portugal) não somos (por enquanto?) uma delas.

sexta-feira, setembro 12, 2008

12 desafios que marcam o futuro da Europa


Em Setembro de 2007 a Comissão Europeia lançou um debate a médio/longo prazo (pós-2013), alargado e “sem tabus” sobre o futuro do orçamento da União Europeia no quadro de uma reflexão sobre as políticas europeias e o papel da UE no mundo.

Apesar de ofuscado por questões institucionais (“não” holandês ao Tratado de Lisboa), económicas (fraco crescimento económico, crise financeira, inflação, etc) e geopolíticas (relações com a Rússia, Médio Oriente, Kosovo, China e o Tibete, etc.), este debate fornece informações privilegiadas relativamente aos “modelos mentais” dos actores e aos interesses em jogo quando se fala do futuro da UE.


De facto, olhando com atenção para os posicionamentos de alguns dos principais actores no debate é possível isolar as narrativas utilizadas relativamente às tendências externas e desafios que sustentam as respectivas tomadas de posição. Assim, é possível identificar 12 grandes desafios que emergem de uma leitura global dos posicionamentos dos actores (governos, partidos, especialistas, etc.), constituindo uma parte significativa da forma como os europeus olham para o mundo e “exigindo” acção por parte da UE:


1- A Globalização/Mundialização, entendida como o processo de integração global, permeabilidade de fronteiras, liberalização e interdependência.
2- As Alterações Climáticas e a Sustentabilidade, entendidas como o conjunto de desafios ligados ao aquecimento global, à poluição, à desflorestação, ao aumento da ocorrência de catástrofes naturais, etc..
3- A Energia, nas suas vertentes de sustentabilidade e segurança energéticas.
4- A Segurança, interna e externa.
5- As Migrações, nas suas diversas facetas.
6- As Alterações Demográficas, ligadas, entre outros factores, ao envelhecimento das sociedades europeias.
7- As Tecnologias de Informação e Comunicação, no que comportam de oportunidades de desenvolvimento e de melhoria dos níveis de vida mas também de riscos (exclusão, segurança, privacidade, etc.).
8- O Papel da UE no Mundo, sempre oscilante entre a lenta construção de um lugar específico para a UE nas relações internacionais e a existência de interesses (e ambições) distintos no seio da UE.
9- A Emergência de novas Economias, com China e Índia marcando uma nova realidade geo-económica internacional (secundados por Rússia, Brasil e outros).
10- Os Recursos Naturais, cada vez mais procurados, mais escassos (em muitos casos) e mais caros.
11- A Pobreza e a Exclusão Social, com os desafios que trazem não só no seio da UE mas também na sua responsabilidade como actor global.
12- Os Alargamentos da UE, até onde e como?

Sendo útil para perceber os rumos que a UE (e a sua despesa) podem tomar, a análise da forma como alguns dos principais actores da construção constroem as suas narrativas sobre o futuro permite-nos perceber melhor (e antecipar) as suas acções. Como dizia uma colega referindo-se à importância das nossas expectativas relativamente ao futuro (exagerando para efeitos de clareza): “não me interessa se as tuas ideias sobre o futuro são certas ou erradas; interessa-me sobretudo saber que as tens e que elas vão condicionar o teu comportamento”.

(post baseado em trabalho de investigação elaborado em colaboração com Nuno Alves e disponível em http://www.dpp.pt/pages/files/Futuro_Orcamento_UE.pdf.)

sexta-feira, julho 04, 2008

O Grande Jogo dos Talentos


Toda a gente fala da qualificação das pessoas, da aposta na formação, na formação ao longo da vida, etc. São palavras gastas e quase já custa ouvi-las quando proferidas, vezes sem conta, por políticos e outros responsáveis.
Mas porque é que a qualificação das pessoas é, afinal, importante para Portugal? Ou melhor, porque é que é cada vez mais importante?
A globalização não é só a competição global pelos capitais. É também a competição global pelas qualificações, o “Grande Jogo dos Talentos”.
A ascensão (quase “erupção” devido à sua velocidade e impacto) de economias de milhares de milhões de pessoas (China e Índia) e a crescente concorrência entre blocos desenvolvidos pela construção de economias baseadas no conhecimento, associada à difusão e “miscigenação” de novas tecnologias (Tecnologias da Informação e da Comunicação, biotecnologias, engenharias várias) e à transformação provocada pelo envelhecimento da população nas sociedades desenvolvidas, comporta uma valorização global do talento.
Os talentos (e o conhecimento) são cada vez mais decisivos em economias que se querem basear na inovação, na criatividade, na tecnologia e no alto valor acrescentado dos seus produtos e serviços. E potencialmente mais raros em sociedades envelhecidas. Esse talento pode ser técnico, artístico, criativo. Pode ser também a capacidade especial de aprender em permanência, de mudar, de aceitar riscos e desafios. De mobilizar excepcionalmente equipas, de gerir e de liderar.
É neste contexto que melhor se percebe o “Grande Jogo dos Talentos”, a competição acérrima e decisiva pelas qualificações e pela atracção e retenção de pessoas (e equipas) qualificadas/talentosas (nos países, nas regiões e nas empresas).
Olhando para Portugal é possível ser optimista e pessimista, como habitualmente. Podemos ser pessimistas se salientarmos o número de portugueses qualificados fixados no estrangeiro, as dificuldades em aproveitar pessoas estrangeiras qualificadas a residir em Portugal, o envelhecimento da população, as instituições avessas à mudança e que encaram o talento – e a diferença - como uma ameaça, os problemas ao nível da atracção e retenção de Investimento Directo Estrangeiro, as historicamente baixas taxas de retorno do investimento em educação/qualificação, o insucesso e o abandono escolares e os índices de pobreza e exclusão social.
Podemos ser optimistas se considerarmos a proliferação de iniciativas no âmbito da Sociedade da Informação, o potencial a explorar (em exploração?) de atracção dos portugueses qualificados espalhados pelo Mundo e de atracção de imigrantes qualificados, as “empresas-iguaria” que existem em Portugal em diversos sectores (exs: Critical Software, YDreams, Mobicom, Bial, Chipidea, Logoplaste, Martifer, Renova etc - algumas delas spin-offs das Universidades e Centros de Investigação) e o nível muito significativo de investimento público em educação/formação.
De qualquer forma, independentemente do nosso optimismo ou pessimismo individual, o “jogo” já está a decorrer. Vamos ver quem ganha.

sexta-feira, maio 02, 2008

Abrir a Janela e Olhar para o Mundo


A nossa princesa, apesar do nome, tem por hábito olhar para fora da Europa. Ou melhor, a nossa princesa, tendo consciência do nome, sabe que a compreensão da Europa será sempre parcial sem a capacidade de olhar para fora dela, para as grandes forças globais de mudança que marcaram o seu passado e enquadram o seu futuro.

Não se pode compreender a integração europeia sem perceber as implicações de duas guerras mundiais e a ascensão das duas super-potências do século XX: URSS e EUA. Não se pode compreender o alargamento da UE a um conjunto de países da Europa Central e Oriental sem perceber a fragmentação do império soviético e da sua esfera de influência (Jugoslávia incluída).

Tal como não se pode compreender, por exemplo, a Estratégia de Lisboa sem perceber o impacto na Economia Mundial de dois grandes actores: a China (“a fábrica do mundo”) e a Índia (“o escritório do Mundo”). Ou a crescente importância da Política Energética Europeia sem ter em conta as limitações na oferta de petróleo e o crescimento exponencial da procura de hidrocarbonetos proveniente das grandes economias em ascensão. Ou a valorização do Euro sem a integrar no contexto das idiossincrasias da economia americana. Ou a necessidade de rever as regras subjacentes ao Modelo Social Europeu sem uma percepção clara das consequências da posição particularmente sensível da Europa no que toca ao envelhecimento da população.

Se aplicarmos o mesmo raciocínio a Portugal encontramos, para lá das grandes forças globais, dois “enquadramentos próximos” altamente definidores do futuro do nosso país: Espanha e União Europeia. E se o distanciamento dos portugueses relativamente às questões europeias já foi amplamente identificado e debatido, já o distanciamento português no que toca às questões espanholas (ou ibéricas, se preferirem) é menos falado. E, no entanto, o futuro a médio e longo prazo de Portugal será sempre marcado pela evolução da economia e da sociedade espanholas. Pensem apenas em duas estruturas muito simples de Cenários para Espanha para entendermos rapidamente a enorme diferença ao nível dos desafios que colocam a Portugal:

· Estrutura de Cenário 1: o modelo de crescimento económico espanhol baseado no turismo, imobiliário, serviços pessoais e indústrias da saúde (“modelo Flórida”) e energias renováveis e aeronáutica consegue renovar-se continuamente (apesar de alguns “sustos” ligados à queda do preço do imobiliário) e garantir taxas de crescimento sustentadamente acima dos 3%. Para além disso, as grandes empresas espanholas consolidam uma presença dominante na América Latina e investem em larga escala e com sucesso nos países Anglo-Saxónicos (exemplo: EUA) e em algumas das mais dinâmicas economias emergentes. Uma maior autonomia regional é concedida, sem pôr em causa a capacidade de “Madrid” canalizar fundos para apoio ao desenvolvimento das regiões mais pobres. Na Europa, Espanha afirma-se como um “grande” de pleno direito, com uma Economia mais competitiva do que, por exemplo, a italiana.

· Estrutura de Cenário 2: a crise no mercado imobiliário fragiliza a economia espanhola e a estabilidade dos seus grandes grupos económicos ligados aos sectores infra-estruturais. Os europeus desinteressam-se pelo investimento residencial em Espanha não só devido à instabilidade do mercado mas também em consequência da crescente instabilidade e violência no Sul do país. Grandes empresas espanholas envolvidas na expansão para a América Latina mudam de propriedade, sendo adquiridas por investidores franceses, alemães e britânicos. As tensões entre Catalães, Bascos e “Madrid” aumentam com a concessão de cada vez maior autonomia assente na apropriação das receitas fiscais pelas regiões autónomas espanholas. Por outro lado, a divisão entre conservadores e liberais em Espanha acentua-se, levando a posições cada vez mais extremas que tornam praticamente impossível o estabelecimento de consensos nacionais. As relações com o Norte de África são tensas com “erupções periódicas” em torno de Ceuta e Mellila. O Estado espanhol estaria pressionado por todos os lados.

O futuro de Espanha pouco será influenciado pelo futuro de Portugal. Mas reparem como o contrário não é verdade. Como ficaria Portugal em cada um destes Cenários? Que riscos comportam para Portugal? Que opções deixam em aberto? Que oportunidades abrem? Como as podemos aproveitar? Que sinais devemos monitorizar para nos apercebermos se o nosso vizinho caminha numa ou noutra direcção? O que pudemos fazer desde já para nos prepararmos para eles?
São precisamente as forças que não controlamos que temos que compreender melhor. E a nossa princesa sabe que a ilusão de que o futuro da Europa só depende dela própria pode acabar por condicionar esse futuro, aumentando os riscos das utopias europeias se transformarem em distopias. Para Portugal, como vimos, o raciocínio é o mesmo. É por isso que a Princesa abre a janela e, com o máximo de atenção, olha para o Mundo.

sexta-feira, março 14, 2008

O elefante cor-de-rosa que nos diz “bom dia”

Sinais fracos são pequenos sinais de grandes mudanças. Trata-se de pequenas alterações no contexto competitivo de uma determinada organização ou território, difíceis de captar (porque a informação é normalmente escassa e fragmentada) mas com grande potencial de criação de vantagens competitivas para os actores que os consigam identificar e interpretar em tempo útil. Podem indiciar, por exemplo, novas tendências, a alteração de tendências actuais ou eventos disruptivos (wild cards).
É precisamente o facto de serem fracos e difíceis de captar que os torna mais importantes. Se fossem fortes seriam, em princípio, visíveis por todos, incluindo os nossos concorrentes, pelo que o seu entendimento não traria vantagem estratégica. Coloquei a ressalva “em princípio” porque, por estranho que pareça, mesmo sinais fortíssimos parecem por vezes ser ignorados pelos agentes. É como ir na rua e ignorar o elefante cor-de-rosa que calmamente passa por nós e nos diz “bom dia”. Veja-se o caso do grande alargamento da UE aos países da Europa Central e Oriental em 2004 e a reacção de enorme preocupação, registada em 2004, de um conjunto de agentes económicos e de receptores de fundos comunitários. A existirem preocupações com os impactos profundos na economia portuguesa e na nossa posição na UE elas deveriam ter-se manifestado pelo menos desde o início do novo século, sendo que sinais dessa evolução já deveriam ter sido captados e interpretados pelo menos desde o início da década de 90 do séc. XX, com a implosão do império soviético.
No entanto, muitos dos sinais fracos captados por um agente não se revelam importantes no futuro. A ideia base é que, de um conjunto de sinais captados, se comece a retirar padrões de compreensão da realidade que levam à antecipação de mudanças estruturais relevantes para o foco em análise (a nossa empresa, a nossa instituição, a nossa cidade ou o nosso país). Mesmo que, naturalmente, muitos dos sinais captados acabem por não ter importância estratégica.
Um exemplo: as possibilidades abertas pela convergência das biotecnologias, das nanotecnologias e da electrónica ao nível dos chips (circuitos integrados) e dos implantes humanos. As tecnologias já existem ou estão em desenvolvimento e as suas potencialidades de utilização e impactos nos negócios e na vida das pessoas podem ser muito fortes.
Não só poderão servir para a localização permanente das pessoas como ter implicações ao nível da segurança que levem, por exemplo, alguns países a tornar obrigatória a respectiva implantação. As notas e as moedas em circulação deixarão de fazer sentido pois o nosso implante incluirá uma “carteira electrónica”. Tal como os cartões de crédito pois mesmo os computadores tenderão a ser capazes de “ler” o nosso chip pelo que não será necessário qualquer número de cartão de crédito para pagamentos on-line. E serão os implantes todos iguais ou poderão vir a existir uns mais avançados (e mais caros) que outros, capazes de operações mais complexas, de estímulos mais avançados, de fornecer uma maior amplitude de sensações e de uma monitorização mais completa do nosso estado de saúde, por exemplo. Aliás, não há nenhuma razão para eu querer o meu implante biónico igual ao dos outros, havendo também aqui, lugar para a personalização do produto de acordo com os gostos e opções do portador.
Reparem como, neste caso, da convergência de áreas tecnológicas antes separadas se podem retirar potenciais consequências e desafios para o Estado e a vida em sociedade (ética, segurança), as finanças e a moeda (pagamentos e moeda circulante), tecnologia, marketing, saúde, etc. E não se esqueçam que há 25 anos não existiam, por exemplo, a Internet, um país chamado Rússia, a ubiquidade dos PCs, a China a crescer a dois dígitos, um telemóvel no seu bolso, a UE alargada e a livre circulação, hipermercados em Portugal, a Índia a atrair serviços de todo o mundo, a liberalização do comércio e dos investimentos e a Al-Qaeda. Mas os sinais para todas estas mudanças já existiam.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Olhares sobre o mundo II

Entre os temas abordados no último artigo contava-se a instabilidade nos mercados financeiros que teima em continuar. E se o “susto” teve a consequência, como referi, de colocar um travão à subida das taxas de juro na zona euro, também parece ter colocado um travão às expectativas de crescimento quer nos EUA quer na Europa. Os analistas discutem se as economias emergentes da Ásia (principalmente as muito grandes: Índia e China) terão capacidade para manter as suas muito elevadas taxas de crescimento independentemente das crises financeiras e imobiliárias de outros. Eu, se tivesse que apostar, apostaria que não. Apostaria que a globalização é para o bem e para o mal e que uma expectável diminuição do consumo nos EUA dificilmente deixará de afectar o crescimento Chinês, por exemplo. O índice de Xangai já dá, aliás, claros sinais de correcções. E reacções proteccionistas ao nível da circulação de capitais poderão piorar ainda mais a situação, dificultando a “reciclagem” dos imensos superávites comerciais quer das “fábricas” asiáticas quer dos produtores de petróleo e gás natural. Ainda no capítulo financeiro, “quelqu’un ma dit”, veremos muito provavelmente durante 2008 o resultado de uma das muitas discussões lançadas pelo imparável presidente francês Sarkozy: a da independência do BCE, instituição actualmente encarregue de limitar pressões inflacionistas e não de gerir ciclos de crescimento/recessão económica na zona euro.

sexta-feira, novembro 02, 2007

Seis olhares sobre o mundo

É em tempo de novo tratado na União Europeia (o de Lisboa) e de grandes cimeiras, que apetece olhar um bocadinho para fora, para o que se passa fora dos ambientes cristalizados do Pavilhão Atlântico (onde tiveram lugar as últimas negociações para acertar os termos do futuro Tratado de Lisboa) ou do Convento de Mafra (onde Puttin, Sócrates, Barroso, Solana e outros se encontraram).

1) A Turquia, eterno candidato à entrada na UE, enfrenta um enorme dilema. Entrar ou não em território iraquiano para combater o PKK (força militar que luta por um Curdistão independente) correndo o risco de destabilizar ainda mais o frágil (des)equilíbrio iraquiano. E os vizinhos turcos também enfrentam um grande dilema: apoiar ou criticar (ou olhar para o lado) a agressividade turca, sabendo eles que um recrudescer da luta por um Curdistão independente está longe de afectar apenas a Turquia. Esse Curdistão potencial incluiria parte da Turquia, parte do Iraque, parte da Síria e parte do Irão. Compreensivelmente, a presidência portuguesa da UE espera que este problema, a “arrebentar” (e outros, como o Kosovo), o faça lá para 2008.

2) O “ex-futuro Presidente dos EUA” Al Gore ganhou o Nobel da Paz, colocando as alterações climáticas ainda mais no centro da discussão global. Por muito que se diga (e é verdade) que uma nova revolução produtiva “limpa” (novas fontes energéticas; novas formas de mobilidade; novos materiais, etc.) comporta renovadas oportunidades de crescimento económico, não deixa também de ser verdade que a “baleia” chinesa consome hidrocarbonetos em excesso e polui em excesso. E quando estas jovens baleias se agitam, principalmente a chinesa mas também a indiana, os mercados agitam-se (por exemplo o das matérias‑primas, mas não só). E ambas estão em processo de crescimento muito acelerado, estão a urbanizar, estão a motorizar, estão a industrializar. São muitos milhões de pessoas envolvidas nestes processos, os quais são a base das emissões de CO2 para a atmosfera e a base da mão humana no que concerne às alterações climáticas. Neste âmbito a UE parece liderar o esforço global. Só falta, agora, o mais difícil: explicar à jovem e impulsiva “baleia” chinesa a necessidade de controlar as emissões de CO2 e os consumos de hidrocarbonetos e aos EUA a necessidade de metas obrigatórias individuais no que toca às emissões.

3) O nuclear, muitos anos depois das primeiras bombas e da contagem de ogivas entre blocos característica da Guerra Fria, continua a agitar a cena internacional. Depois da falsa ameaça iraquiana e do adormecimento da Coreia do Norte, o Irão está agora no centro da agenda e a Síria é encarada cada vez mais como suspeita de estar a desenvolver projectos nucleares em segredo. A suspeita sobre a Síria avolumou-se depois do segredo cúmplice após a ‘Operação Orquídea’ realizada por caças israelitas em território sírio. O que é que estes caças atingiram (ou queriam atingir) é que ninguém quis revelar, fazendo lembrar raides semelhantes realizados pelos israelitas contra instalações eventualmente ligadas com projectos nucleares no Iraque de Saddam Hussein.

4) Finalmente, os mercados financeiros estão desconfiados, inquietos. As grandes vantagens da sua integração e globalização também mostram o reverso da medalha quando o risco se espalha, sim, mas também perde adesão à realidade. A sensação de que todo o risco podia ser diluído no mercado desvaneceu-se a partir do momento em que, simplesmente, o mercado deixou de o comprar. Foi assim que um problema localizado de insolvência de clientes de crédito hipotecário de alto risco nos EUA se globalizou rapidamente, fazendo algumas das suas principais vítimas na Europa, como foi o caso do BNP Paribas (falência de fundos de investimento) e do Northern Rock britânico (numa decisão extrema, o Banco Central inglês teve que abrir uma grande linha de crédito destinada a este Banco e garantir as poupanças dos clientes na tentativa de evitar uma crise ainda maior). Isto apesar de uma reacção energética quer da Reserva Federal dos EUA quer do Banco Central Europeu.

5) A boa notícia é que este “susto” evitou mais uma subida das taxas de juro na zona euro. Resta saber se se trata do fim do ciclo de subidas ou se, o que me parece mais provável, é apenas uma interrupção temporária desta tendência. Neste capítulo, veremos ainda o resultado de uma das muitas discussões lançadas pelo imparável presidente francês Sarkozy: a da independência do BCE, encarregue de limitar pressões inflacionistas e não de gerir ciclos de crescimento/recessão económica na zona euro. Além disso o euro nunca esteve tão forte face ao dólar o que, já se sabe, é bom para quem compra ao exterior mas prejudica quem tenta vender. É, neste caso, duplamente bom para as grandes multinacionais americanas que vendem em dólares e consolidam os seus resultados globais em dólares. Quem, a partir de Portugal, tentar competir globalmente enfrenta um triplo constrangimento macroeconómico: taxas de juro a crescer, euro forte, fiscalidade elevada.

6) Resta saber se as águas tradicionalmente mais cálidas do mercado interno (imobiliário/construção, sector financeiro, distribuição, sectores infra‑estruturais, telecomunicações, etc.) continuarão a ser um bom refúgio para os capitais portugueses tendo em conta uma procura potencialmente mais acanhada, crédito mais restrito e, claro, cada vez menos barreiras à entrada. Neste contexto, uma particular atenção à sustentabilidade dos preços do imobiliário, refúgio para o investimento e a poupança na Ibéria, é crucial para o futuro próximo da economia portuguesa. E os sinais vindos do nosso vizinho do lado são preocupantes, prevendo-se uma desaceleração do crescimento económico espanhol associada a uma desaceleração do imobiliário (isto em contexto pré-eleitoral). Nos EUA, só para dar um exemplo, a crise no sector do imobiliário é já uma realidade. Curiosamente, na minha perspectiva, o futuro do país até pode beneficiar, a médio/longo prazo, de um pequeno crash imobiliário/construção se esta for a única forma de agitar carteiras e consciências, tornando mais competitivos investimentos de maior valor acrescentado, mais exigentes ao nível do conhecimento e da inovação e transaccionáveis internacionalmente. Enquanto as taxas de retorno do imobiliário/construção/turismo forem muito elevadas, o que significa capital de risco em Portugal?

sexta-feira, setembro 07, 2007

Tempo curto – uma reflexão

Vivemos num ponto infinitamente pequeno da história do ser humano na Terra; a história do ser humano na Terra é um ponto infinitamente pequeno da história da própria Terra; e a história desta última é um ponto infinitamente pequeno da história do Universo.
A nossa existência é infinitamente pequena mas isso todos sabemos, eventualmente sem pensarmos muito nisso. Essa pequenez parece-me ser, no entanto, mais do que uma óbvia limitação orgânica, um poderoso incentivo à procura de liberdade, acabando por ser indissociável dela, pois sem essa procura essencial ela não existiria. Neste sentido, a nossa existência curta é a outra face da nossa liberdade individual. A liberdade de viver um momento curto que é a nossa vida e de o tornar significativo (para cada um de nós); a liberdade para fazer opções, para querer e para não querer, para questionar as ideias feitas e para perguntar “porquê?”.
Se vivêssemos para sempre não necessitávamos tanto, tão urgentemente de ser livres. De experimentar, de testar, de escolher. Ao ser infinita a vida perderia o seu valor infinito. Ou seja, se vivêssemos para sempre não necessitávamos tanto de viver.
É precisamente pelo nosso tempo ser tão curto que a liberdade é tão importante. A democracia e os direitos humanos, por exemplo, são sinais dessa luta humana essencial. Ideias e práticas que relativizaram (e relativizam) o presente (e os seus valores; por exemplo a liberdade individual) e que marcaram profundamente o século XX (e alguns dos seus maiores conflitos), prometendo um “futuro radioso”, um “Homem diferente”, renascido, usaram esse instrumento tão poderoso que é o futuro não como veículo de liberdade e de possibilidade no presente mas como forma de escravizar esse mesmo presente, de limitar o ser humano nas suas opções, na sua curiosidade, na sua ironia e, claro, na sua liberdade.
Tenho a noção que a liberdade exige consciência e capacidade. Consciência da possibilidade de o ser e capacidade (real) para o ser. Assumo, neste texto, que somos conscientes e capazes. Nesse sentido, a função central do Estado seria lutar sempre pela possibilidade (material, por exemplo) da liberdade e contribuir para a consciência individual da mesma por parte dos cidadãos.

segunda-feira, julho 02, 2007

Fundos Comunitários: sim, mas...


Nada terá marcado mais Portugal nos últimos 20 anos que o processo de integração europeia. E, no âmbito desse processo, os Fundos Comunitários, conjuntamente com o Euro, apresentam-se, para o bem e para o mal, como os processos com maior impacto na vida dos portugueses. Só um erimita bem escondido no fundo de uma caverna não terá já passado por uma estrada co-financiada pelo FEDER, frequentado um curso co-financiado pelo FSE ou usufruido de uma qualquer estrutura apoiada pelos Fundos.


Mas porque é que existe Política de Coesão da União Europeia? Porque é que um conjunto de Estados mais ricos do que nós mas com problemas como todos os outros, decidem de forma recorrente transferir recursos para o orçamento comunitário que, depois, serve para alimentar os menos ricos, principalmente se essa menor riqueza, casmurra, tende a prolongar-se no tempo, como no caso português?
A ambição da Política de Coesão da UE é muito simples: reduzir as diferenças de rendimento entre países e regiões da UE.


Antes de mais, a Coesão e os meios financeiros a ela alocados têm uma justificação política, são um objectivo da UE, constituem uma opção política europeia presente nos Tratados, o direito primário da União. Por exemplo: “A União atribui-se os seguintes objectivos: — a promoção do progresso económico e social e de um elevado nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equilibrado e sustentável(...), o reforço da coesão económica e social e o estabelecimento de uma união económica e monetária (...). (Tratado UE, artigo 2º, alínea a).


Mas, se a justificação política é central para a Coesão e para a sua Política central, a Política Regional, há um conjunto de argumentos económicos que têm sido utilizados para a justificar. A maioria destes argumentos está ligada à integração de mercados, processo com grande força e impacto que se confunde com a própria história da construção europeia. Conhecidos os seus impactos positivos ao nível da eficiência na alocação de recursos, este processo não deixa de comportar significativos custos de reestruturação, sendo reconhecido que os países mais ricos, fruto de situações de competição monopolística nos mercados integrados e da sua maior capacidade de inovação baseada na diferenciação de produtos, podem retirar maiores benefícios da referida integração. Esta ideia constitui um argumento económico para a existência de uma Política Regional que ajude os países e as regiões mais pobres a recuperar das suas dificuldades estruturais de partida.

A imperfeita mobilidade dos factores de produção (ex: conhecimento/tecnologia) que dificulta a convergência, comporta um bónus de crescimento para as regiões ricas a partir de avanços tecnológicos baseados no capital humano. Esta ideia é reforçada pelas novas teorias da Economia Evolucionária segundo as quais o conhecimento e a inovação tendem a concentrar‑se em determinadas áreas, essencialmente em resultado da importância do conhecimento tácito para a inovação que necessita de contactos entre pessoas e organizações, redes, experiência acumulada, necessitando de um processo de learning-by-doing para se reproduzir (ao contrário do conhecimento codificado, facilmente apreendido, transmitido e reproduzido).
Adicionalmente, a União Económica e Monetária (UEM) e o Euro, associados à existência de diferenças de especialização entre países e regiões e aos diferentes níveis de rendimento a elas associados, levam a uma maior susceptibilidade a choques assimétricos na UE (no contexto de uma Política Monetária única), comportando uma necessidade acrescida de convergência das estruturas produtivas e funcionando, assim, como reforço dos argumentos a favor da Política de Coesão.


Percebe-se porque existe, então, Política de Coesão e Fundos Comunitários. Percebe-se a sua importância central (basta olhar à nossa volta) no processo assinalável de transformação de Portugal.
Mas convém não esquecer que os mesmos fundos estruturais, quase à semelhança do ouro do Brasil, não comportam apenas incentivos positivos. Entre os incentivos negativos potenciais e actuais podemos identificar: (1) um crescimento fundamentalmente baseado em injecções maciças de fundos e não na dinâmica própria da economia e das suas actividades; (2) a pressão para a valorização da taxa de câmbio real em consequência dos fluxos financeiros do exterior, dificultando as exportações; (3) a tendência para uma economia “politizada” (fundos disponíveis para “utilização” política) e a concentração da energia política e económica na luta pela distribuição de fundos abundantes (e não na criação de riqueza, no assumir de riscos, etc.); (4) uma menor ligação entre fiscalidade e investimento público (maior “distanciamento democrático”); (5) mais foco na execução e menos na capacidade reprodutiva dos investimentos.
Cuidado.

sexta-feira, maio 18, 2007

Uma Caixa de Ferramentas da Prospectiva Estratégica I


Tenho-me referido nos últimos artigos a um conjunto de autores que estruturam uma “história do futuro” no século XX, isto é, à forma como o futuro foi tratado no século XX como objecto de análise, de reflexão e de acção por diversas escolas da Prospectiva. Voltarei a essa viagem em próximos artigos mas, neste, decidi referir‑me sucintamente a um conjunto de ferramentas da Prospectiva Estratégica que estão à disposição de regiões, cidades, Estados, empresas, associações e outro tipo de organizações para melhor tomarem as suas decisões no presente, tendo em conta uma exploração sistemática, sistémica, criativa e útil do futuro. Neste artigo vou-me referir de forma muito breve a oito ferramentas.
1. Os sistemas de Environmental Scanning, cada vez mais em voga, por exemplo, ao nível da monitorização estratégica regional no Reino Unido, fornecem early warnings, avisos que prenunciam alterações importantes no contexto (mais próximo ou mais longínquo) da organização, e detectam weak signals, sinais ainda não completamente estruturados mas indicativos de mudanças disruptivas, alterações em tendências identificadas ou transformação de emergências (no sentido de algo que emerge e não no sentido de urgência) em tendências.
2. A Futures Wheel é uma ferramenta de análise das consequências potenciais de tendências ou acontecimentos num determinado foco. Utilizo a expressão inglesa original pois a tradução literal para português, “volante dos futuros”, não incute grande credibilidade a uma ferramenta muito útil que permite não só identificar, distinguir e agrupar consequências de 1ª, 2ª e 3ª ordem de tendências ou eventos, como também explorar opções de política decorrentes dessas consequências. De forma rápida um grupo consegue recolher informação muito variada, facilitando a criatividade. A linguagem subjacente à Futures Wheel permite desde logo uma primeira estruturação da informação (essencial para a construção e exploração colectiva de uma questão/problema).
3. O método Delphi consiste na utilização de painéis de peritos para uma melhor percepção das evoluções possíveis e prováveis (e das suas consequências) relativamente a um determinado foco. Amplamente utilizado nas questões tecnológicas (no Japão, EUA, Reino Unido, etc.) tem sido crescentemente utilizado em exercícios globais de Prospectiva, normalmente de âmbito nacional.
4. A Análise de Impactos Cruzados é uma abordagem analítica às probabilidades de um item (um acontecimento, por exemplo) num conjunto de probabilidades. Permite a percepção das influências cruzadas entre eventos probabilizados e o teste da coerência das probabilidades subjectivas atribuídas por peritos em painéis.
5. A Análise Estrutural permite relacionar exaustivamente os elementos constitutivos de um determinado sistema, fornecendo pistas para a identificação das variáveis‑chave desse sistema, isto é, as variáveis mais decisivas para a sua evolução futura.
6. A Análise da Estratégia dos Actores, partindo do estudo dos projectos e meios de acção dos Actores (organizações, indivíduos, etc. capazes de influenciar/serem influenciados pelo foco do trabalho de Prospectiva), permite a identificação das relações de força entre Actores, dos principais conflitos e alianças (actuais e potenciais), do apoio/oposição a determinadas evoluções das variáveis e configurações de Cenários, etc.. Trata-se de um instrumento de sistematização e auxílio da análise e melhor compreensão do “jogo” no qual estão envolvidos um determinado conjunto de Actores.
7. A Análise Morfológica parte da ideia de que um sistema pode ser decomposto em dimensões e componentes (por exemplo, demográficas, económicas, tecnológicas, societais, organizacionais), sendo que cada uma das componentes terá um conjunto de estados (configurações) possíveis. Uma combinatória de uma configuração de cada uma das componentes não é mais do que uma estrutura básica de um Cenário.
8. O Método dos Cenários da Escola Lógico-Intuitiva, herdeira de Herman Khan, da Shell e da Global Business Network utiliza um processo de identificação de um número limitado de incertezas cruciais (normalmente duas, muito incertas e com muito impacto no foco) como a base da construção de Cenários que servem, entre outros objectivos, como forma de tornar mais claro o mix de decisões estratégicas com maior benefício potencial tendo em conta as incertezas e os desafios colocados pelo ambiente externo ao foco do exercício.

Estas ferramentas são apenas um pequeno “menu de entradas”. São muitas mais as ferramentas utilizadas, combinadas e adaptadas nos processos de Prospectiva. Sobre cada uma delas está disponível uma vasta bibliografia mas, como em muitas outras áreas, também neste caso só se consegue aprender fazendo, aplicando, experimentando e, por vezes, errando.
São instrumentos para a mudança, ferramentas à disposição dos responsáveis regionais (mas também de outras organizações) para fazerem aquilo que cada vez mais define o seu futuro: serem capazes de mobilizar os actores (actuais e potenciais) em torno de um projecto de território, de incentivar e estruturar a criatividade, de construir uma visão integradora que reflicta as ambições dos stakeholders e os responsabilize pela sua implementação, de definir um foco estratégico para a entidade regional que funcione como um farol para a tomada de decisão pública e privada, de construir uma identidade aglutinadora de energias e que dê coerência à acção política.
Explorarei de forma mais aprofundada algumas destas ferramentas e das suas aplicações (com foco na Prospectiva Estratégica de base territorial) em próximos artigos.

sexta-feira, abril 13, 2007

A Evolução do Futuro no Século XX: a Escola da Shell [1]


A Shell é indissociável de qualquer descrição da forma como o Homem tentou, no século XX, gerir, pensar de forma inteligente e trabalhar sobre o futuro desconhecido. Esta multinacional é, literalmente, a casa‑mãe do Planeamento por Cenários, ferramenta de referência da Prospectiva, entretanto generalizada ao nível do Planeamento Estratégico não só ao nível das empresas como dos países, regiões, cidades, etc.. Entre outros, três nomes, em diferentes gerações, marcaram o processo de utilização dos Cenários na Shell, desenvolvendo de forma cumulativa o Scenario Thinking and Planning: Wack, Schwartz e van der Heijden.
Pierre Wack (na foto), considerado um génio (e um místico) é, provavelmente o grande responsável pelo sucesso e posterior generalização do Método dos Cenários, não só na Shell mas em grandes empresas nos EUA e na Europa. “O homem que viu o futuro”[2] foi Director do Departamento de Planeamento do Grupo Royal Dutch/Shell durante 10 anos caracterizados por uma grande turbulência (1971 – 1981), sendo autor de dois textos essenciais publicados em 1985 na Harvard Business Review: “Scenarios: uncharted waters ahead” e “Scenarios: shooting the rapids”. Estes textos descrevem de forma brilhante o processo que permitiu à Shell antecipar a formação do cartel do petróleo (OPEP) e o choque petrolífero associado. O sucesso da Shell no período foi flagrante: segundo van der Heijden, os seus concorrentes demoraram cerca de dois anos para reconhecer a própria crise de 1973 e mais cinco ou seis anos para diminuir a capacidade instalada.
Peter Schwartz e Kees van der Heijden foram sucessores de Wack na Direcção do Departamento de Planeamento por Cenários do Grupo Royal Dutch/Shell. Ampliaram o raio de acção da cenarização para além das questões energéticas e fundaram a Global Business Network (GBN), uma comunidade de excelência centrada no desenvolvimento, aprendizagem e aplicação do pensamento por Cenários a múltiplos objectos de análise constituindo-se, actualmente, como uma das mais importantes organizações na área do Planeamento por Cenários e oferecendo serviços de consultoria, formação e divulgação desta disciplina a uma escala global (hoje é parte do Monitor Group, co‑fundado por Michael Porter). Kees van der Heijden trabalhou o Planeamento por Cenários enquanto “Conversação Estratégica” e formalizou aquilo que Wack e Schwartz desenvolveram e apresentaram essencialmente de forma intuitiva.
O Planeamento por Cenários direccionou-se, com estes autores, para a interpretação das tendências, dos processos e das estruturas (vs. interpretação dos dados do mercado) e, sobretudo, para a disciplina mental de antecipação e desenvolvimento de “mundos”/contextos diferentes (vs. diferentes resultados no mesmo mundo), conduzindo a estratégias adaptadas aos fenómenos emergentes, às variáveis diferenciadoras dos Cenários e a uma diminuição da surpresa estratégica.
A Shell continua a utilizar os Cenários como metodologia de referência no seu planeamento estratégico. Uma versão pública dos últimos Cenários globais desenvolvidos pela empresa bem como um conjunto muito alargado de recursos na área do Planeamento de Cenários estão disponíveis em www.shell.com/scenarios.

[1] Para uma introdução teórica à Prospectiva e a apresentação das várias escolas de pensamento da disciplina ver Alvarenga, António e Soeiro de Carvalho, Paulo: “A Escola Francesa de Prospectiva no Contexto dos Futures Studies – da “Comissão do Ano 2000” às Ferramentas de Michel Godet” (disponível em http://www.dpp.pt/gestao/ficheiros/futures_studies.pdf).
[2] Art Kleiner: “The Man Who Saw the Future”, in “strategy + business”, Spring 2003.

sexta-feira, março 09, 2007

A Evolução do Futuro no Século XX: Daniel Bell e Herman Khan


O futuro é importante, quanto mais não seja porque é bastante provável que passemos grande parte da nossa vida lá.
A área do conhecimento e da acção da Prospectiva tem como foco fundamental essa preocupação com o futuro, não com a sua previsão, mas com a sua construção, utilizando para tal uma miríade de instrumentos metodológicos que passam pelos Cenários, a Análise de Tendências, a Análise do Jogo de Actores, etc..
Num trabalho recente do qual fui co-responsável[2] foram identificados como benefícios genéricos dos exercícios de Prospectiva uma mais fácil comunicação e coordenação entre stakeholders (exemplos de stakeholders: governo e outras entidades públicas, empresas, academia, ONG’s, sindicatos, mídia, escolas, cidadãos); a concentração no longo prazo; a construção de uma visão partilhada que facilite a focalização dos actores, gerindo incertezas, potenciando exercícios mais inclusivos e fortalecendo redes e interfaces (capital social); a contribuição para a definição de prioridades (num contexto de significativas restrições ao nível dos recursos e de crescente concorrência internacional); e a criação de compromissos (de participação e de implementação).
Construímos, no referido trabalho, seis “nebulosas” da Prospectiva (o termo justifica-se pela “fluidez” da classificação), autores e grupos de autores fundamentais para a compreensão da evolução da Prospectiva durante o século XX. A nossa princesa fará, neste e em próximos artigos, uma breve incursão por esses autores. Hoje apresenta a primeira dessas “nebulosas”, constituída por Daniel Bell e Herman Kahn.
A criação da “Comissão do Ano 2000” em 1965 pela “Academia Americana de Artes e Ciências” contribuiu decisivamente para a definição do campo de estudo da Prospectiva. Essa Comissão, liderada por Daniel Bell e que integrava muitos outros académicos de renome (Samuel Huntington, por exemplo), resultou numa publicação ainda de grande interesse na actualidade (reeditada em 1997[3]) que incluiu não só textos dos vários participantes como também extractos das discussões suscitadas no seio da Comissão. Entre outras ideias fortes, esta Comissão defendia a importância da análise das alterações estruturais na sociedade com impactos potenciais significativos a longo prazo. Adicionalmente, realçava a importância da decisão (tomada no presente) ter em conta “futuros alternativos”, especialmente no que concerne a assuntos críticos/chave.
Daniel Bell, o presidente da Comissão do ano 2000, impulsionou (e escreveu a respectiva introdução) uma das obras fundamentais de Herman Khan e da Prospectiva: “The Year 2000 – A Framework for Speculation on the Next Thirty‑Three Years” (1967)[4], obra editada pelo Hudson Institute (fundado por Kahn em 1961 depois de sair da Rand). Mas esse livro corporiza apenas uma parte das contribuições de Herman Khan para esta área do conhecimento, as quais abrangeram, entre outros, desenvolvimentos no Método dos Cenários, na aplicação da Análise de Sistemas à antecipação do futuro e na organização de investigação future-oriented de base interdisciplinar. Herman Kahn foi uma personalidade controversa (há quem diga que a personagem do Dr. Estranho Amor de Kubrick se baseou nele). Mais conhecido como Estratega Nuclear, foi também um Cientista Político e um Geo-estratega, tendo iniciado a sua carreira como Físico e Matemático na Rand Corporation. Sobre ele afirmaram, respectivamente, Donald Rumsfeld (i) e Raymond Aron (ii): (i) "Herman Kahn foi um gigante. Abordou assuntos de interesse público com criatividade e com a convicção, no caso dele correcta, de que reflexão e análise poderiam tornar o nosso mundo melhor”; (ii) “De facto, Herman Kahn, com todos os seus estudos científicos, as suas análise subtis, as suas experiências hipotéticas, continua a ser um reformador (...) que apela a uma revolução em conformidade com a revolução tecnológica.”


[2] Alvarenga, António e Soeiro de Carvalho, Paulo: “A Escola Francesa de Prospectiva no Contexto dos Futures Studies – da “Comissão do Ano 2000” às Ferramentas de Michel Godet” (disponível em http://www.dpp.pt/gestao/ficheiros/futures_studies.pdf).
[3] Bell, Daniel e Graubard, Stephen R. (eds.): “Toward the Year 2000 – Work in Progress”, The MIT Press, 1997.
[4] Disponível para download em http://www.hudson.org/files/publications/kahn_yr2000.pdf.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

O papel das autarquias no século XXI


A envolvente da actuação das autarquias portuguesas transformou-se profundamente desde a afirmação autárquica subsequente ao 25 de Abril de 1974. Dois aspectos desta transformação são, na minha perspectiva, particularmente relevantes:
(I) A mudança de foco na actuação autárquica. Realizado, na maioria dos casos, um forte investimento na infra-estruturação básica do território e ao nível dos equipamentos, o papel central do autarca é, cada vez mais, o de liderar um projecto de território, organizar redes e pólos de competitividade e contribuir para a atracção e a manutenção de empresas, projectos e pessoas.
(II) A crescente concorrência, quer a nível nacional (entre cidades, redes de cidades e regiões) quer a nível internacional, não só de cidades e regiões que nos são próximas (por exemplo, as espanholas) mas também de cidades e regiões de zonas do mundo distantes fisicamente mas que a globalização aproximou (exemplos: a ascensão da “fábrica e do escritório do Mundo” – respectivamente a China e a Índia; a abertura e a modernização das economias do Leste europeu).

É neste contexto que cidades e regiões europeias embarcam com cada vez mais frequência em projectos de Prospectiva Territorial capazes de criar uma Visão comum e mobilizadora para o futuro, de fortalecer sinergias, redes e interfaces (capital social), de mobilizar os actores do território e melhorar as relações entre os cidadãos e as autoridades regionais/locais, de facilitar a implementação de processos inovadores e eficientes, de definir prioridades estratégicas, de melhorar a imagem do território e de melhorar a capacidade de inteligência económica dos territórios (identificando riscos a minorar e oportunidades a aproveitar com o máximo de antecipação face à concorrência).

Exemplos a explorar: Projecto Vision 2025 para a região de Helsínquia (http://www.ytv.fi/ENG/future/vision/frontpage.htm), Parceria Estratégica de Birmingham (http://www.bhamsp.org.uk/), Gipuzkoa 2020 (http://www.gipuzkoa.net/g2020/es/index.html), Vision Dublin 2020 (http://www.dubchamber.ie/economy_item.asp?article=496), Cenários para a Região Urbana de Edimburgo (http://www.edinburgh.gov.uk/internet/environment/planning_buildings_i_i_/planning/planning_policies/CEC_a_vision_for_capital_growth_-_2020_-2040), Millénnaire3 (Grand Lyon) (http://www.millenaire3.com/), Plano Metropolitano Estratégico de Barcelona (http://www.bcn2000.es/ca-es/default_ca_es.aspx), Gotemburgo 2050 (http://www.goteborg2050.nu).

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Para onde olhar? – os três “tigres” Californianos: Silicon Valley, San Diego e Los Angeles


Ocupando grande parte da costa Oeste dos EUA, a Califórnia é um Estado nuclear no que toca à concentração de actividades baseadas no conhecimento, na inovação e na intensidade tecnológica. Conta com cidades, regiões e áreas metropolitanas entre as mais dinâmicas no que toca às indústrias e serviços de maior crescimento nas últimas duas décadas e uma grande percentagem de pessoas com a capacidade necessária para inovar e colocar no mercado novos produtos e serviços, criar emprego, sustentar os contínuos aumentos de produtividade e continuar a fazer da economia norte‑americana o “incubador gigante” de que fala Kaihla[2]. Neste artigo apresentam-se algumas características de três das principais sub‑regiões da Califórnia (Silicon Valley, São Diego e Los Angeles/Condado de Orange) e, no final, avança-se com alguns factores explicativos do sucesso californiano.
Silicon Valley é o pólo global mais brilhante no que toca à economia do conhecimento e à produção de tecnologia, sendo a maior concentração de empresas de alta tecnologia do mundo. Robert Metcalfe, um famoso empresário da área fundador da 3Com referiu: “Silicon Valley é o único sítio na Terra que não está a tentar encontrar uma forma de se tornar em Silicon Valley”. São José é a capital de Silicon Valley, sendo a área metropolitana dos EUA com maior percentagem de emprego quer em sectores ligados às Tecnologias de Informação (48,9%) quer em sectores de alta tecnologia (24,8%). São Francisco/Oakland, área do crescimento inicial dos EUA ligada à corrida ao ouro, é hoje líder mundial na alta tecnologia, capital de risco e biotecnologia e como a região mais atractiva dos EUA para trabalhadores qualificados em áreas da economia do conhecimento. São Francisco é a 1ª classificada do creativity index (grandes cidades) de Richard Florida com 34,8% de trabalhadores pertencentes à “classe criativa”. É um dos epicentros de talento dos EUA, com o seu pool de cientistas, engenheiros, artistas, criadores culturais, gestores e profissionais liberais.

Dotada de uma geografia única (entre o oceano, o deserto e as montanhas), São Diego é a 3ª classificada do creativity index (grandes cidades) de Richard Florida com 32,1% de trabalhadores pertencentes à “classe criativa”. Região urbana em claro crescimento, o condado de São Diego apresentou, entre 2000 e 2002, dos maiores ganhos em termos de empresas (mais 1100), emprego (30 000 novos empregos) e salários (aumento de 2 mil milhões de USD) de todos os EUA. Apesar de um quarto do emprego continuar a ser no sector da defesa, São Diego tem conseguido diversificar o seu tecido produtivo, tendo surgido clusters ligados às telecomunicações e às ciências médicas/biotecnologia. Este último tem-se assumido, nos últimos anos, como o principal motor de desenvolvimento.

Mais a Sul, a região de Los Angeles caracteriza-se por uma grande diversidade económica, não se concentrando tanto em empresas ligadas à Internet/dot‑com como o Silicon Valley nem na biotecnologia/defesa como São Diego. Esta diversidade dá maior estabilidade à Economia mas, por falta de um motor económico mais definido, limita a criação de riqueza e emprego em períodos de expansão de determinadas actividades. Coexiste, no entanto, com uma importância particular do entretenimento, aeroespacial, serviços às empresas e algumas actividades no sector dos bens não‑duradouros. O Condado de Orange (hoje mundialmente famoso através da série televisiva O.C.) passou de subúrbio e zona residencial de apoio a Los Angeles nos anos 70 e 80, ao 4º lugar entre as grandes áreas metropolitanas dos EUA em termos de percentagem de emprego quer no que toca a sectores ligados às Tecnologias de Informação quer no que toca a sectores de alta tecnologia. A força da indústria aeroespacial contribuiu em muito para o desenvolvimento de inúmeras empresas inovadoras em sectores como componentes para computadores, maquinaria industrial, equipamentos médicos e instrumentação científica.

Entre os factores que mais contribuíram para o sucesso da Califórnia nas actividades de alta tecnologia e criatividade podemos apontar (i) a qualidade das Universidades – aposta continuada dos governos estaduais no reforço de algumas grandes universidades, nomeadamente Stanford, Califórnia–Berkeley e Califórnia‑São Francisco. Por exemplo, a Universidade de Stanford participa no capital de centenas de startups – incluindo o Google, o maior motor de busca na internet do mundo – que utilizam tecnologias desenvolvidas na universidade; (ii) a disponibilidade de capitais graças à existência de capital de risco e da forte presença da banca de investimento; (iii) a atracção de investimentos públicos e de fornecedores de programas públicos na área da Defesa e Espaço – dos quais se destacam o centro espacial de Houston e os investimentos dos grandes contractors do Pentágono; (iv) a combinação única, em intensidade, de conhecimentos e competências em dois grandes percursos tecnológicos que marcaram os últimos vinte anos: Ciências da Vida e Ciências da Computação; (v) o ambiente cultural e estilos de vida favoráveis à inovação e à criatividade. São Francisco é um exemplo: sendo um dos principais centros criativos dos EUA, possui uma sólida mistura de indústrias de alta tecnologia com uma história rica, sendo muito forte a sua atractividade no que toca a trabalhadores qualificados em áreas da economia do conhecimento (por exemplo, o novo campus de São Francisco da Universidade da Califórnia dedicado à biomedicina deverá empregar 9000 investigadores); (vi) a posição geográfica que desde sempre facilitou uma abertura ao exterior e, em período mais recente, uma maior interacção com a Ásia, traduzida entre outros aspectos pela atracção de talentos da Índia e da China para as Universidades do Estado, muitos deles posteriormente envolvidos na criação de empresas inovadoras. (exemplo: em 2000 existiam em São José 3755 empresas detidas por indianos e chineses, correspondendo a um volume de negócios acima dos 23 mil milhões de dólares e a 88 000 empregos.[3]

[2] Paul Kaihla: Boom Towns, Business 2.0, Março 2004, pp. 94-102.
[3] Para uma análise aprofundada do caso da Califórnia e de outras regiões dos EUA ver Marques, I., Chorincas, J., Alvarenga, A. e Félix Ribeiro, J. M., “Prosperidade e Inovação nas Regiões dos EUA”, Informação Internacional - Análise Económica e Política, DSP-DPP (MAOTDR), Lisboa, 2006, pp. 9‑102.